segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

Narrativa em "Memorial do Convento"


Tratando-se de uma obra ficcional, esta encontra-se fora do tempo e do espaço. E o anacronismo do discurso do narrador permite-lhe revisitar o passado e recuperar vidas que a História esqueceu.

A atitude narratológica assumida no romance coloca dificuldades de classificação, principalmente porque a instância narrativa não é una, subdividindo-se em outras de menor importância, manipuladas pelo narrador principal.

O narrador revela-se quase sempre omnisciente e assume a posição heterodiegética; mas este estatuto não serve as intenções do autor. Por isso este vai servir-se de outros processos ligados à narração, chegando a criar instruções discursivas para os seus comentários, ironias e divagações; empréstimos do estatuto de narrador a outras personagens da história.

A riqueza e versatilidade deste(s) narrador(es) passam pela adopção de estratégias que visam:

a) Representar-se como narrador-orador capaz de simular um imediatismo no acto de narrar e dando lugar a dialogismos mais ou menos configurados no discurso;

b) Captar a atenção do narratário – convocado para o discurso, tanto por uma pluralidade ambígua (nós) como por um indefinido (“Veja-se”) – que se pretende participante no acto de contar;

c) Gerir a informação a contar, relevando a ficção face à história, o plano humano face ao da realeza (a omnisciência implica, também, selecção e interpretação);

d) Reflectir sobre o narrado e simular o processo de narração homologicamente ao processo de reflexão escrita;

e) Solicitar um leitor activo no processo de leitura da obra.

A atitude do narrador principal para com o narrado é aparentemente contraditória: por um lado, temos uma tentativa de aproximação à época retratada, ao reconstituir a cor local e epocal, mas, por outro, dá-se uma enorme distanciação, visível nas inúmeras prolepses e na ironia sarcástica utilizada para atacar alguns aspectos da História, fundamentalmente os que se ligam às personagens socialmente favorecidas.

O narrador distancia-se do narrado pelas referências irónicas, mas também por um processo de afastamento temporal que o obriga a adaptar a linguagem e a distinguir entre um vocabulário respeitante à época histórica retratada e outro que se reporta à actual.

A actualização de vocabulário é visível quando descreve a pedra do pórtico da igreja, cujas medidas e peso nos são dados primeiro em pés, palmos e arrobas, para depois falar em metros e quilos.

Temporalmente, mais afastados estão os momentos em que o narrador simula actuais visitas guiadas ao convento de Mafra.

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