quinta-feira, 27 de setembro de 2012

A mitologia em "Os Lusíadas"


A Mitologia

A introdução da mitologia, do maravilhoso pagão, era própria do género épico, só que em Camões a mitologia greco-latina introduzida ultrapassa a função de simples adorno poético exigido pela regra de “imitação”. A partir das estrofes 19-20 do Canto I, os planos da viagem e dos deuses vão acompanhar-se sempre, intimamente relacionados, constituindo, no seu conjunto, a ação central da obra.
A realização deste 1.º Concílio marca o momento exato em que os deuses são chamados a intervir, pronunciando-se sobre o futuro dos homens que navegam em mares até então desconhecidos, num empreendimento novo, extremamente importante, no qual vêm dando mostras de coragem e valor ao enfrentarem múltiplos perigos. Reconhecendo o valor de tais humanos, os deuses reúnem, a pedido de Júpiter, para deliberar se devem ou não ajudar os navegadores a encontrar um porto amigo em que possam repousar e recuperar alento para prosseguirem uma viagem que os Fados haviam já determinado viesse a ser coroada com êxito.
Gera-se no Olimpo, onde os deuses se reuniram, grande desavença. Dois “partidos” se formam: um, encabeçado pela Deusa do amor, Vénus, que defende que os portugueses sejam ajudados; outro, por Baco, Deus das paixões, dos vícios, do vinho, que é contrário a tal ajuda. A discussão é violenta, como expressivamente no-lo descreve Camões na estrofe 35:
     "Qual Austro fero ou Bóreas, na espessura,
       De silvestre arvoredo abastecida,
       Rompendo os ramos vão da mata escura,
       Com impito e braveza desmedida;
       Brama toda a montanha, o som murmura,
       Rompem-se as folhas, ferve a serra erguida:
       Tal andava o tumulto, levantando
       Entre os deuses, no Olimpo consagrado."

Marte, Deus da guerra e velho apaixonado de Vénus, têm então uma intervenção decisiva em que incita Júpiter a não voltar atrás com a decisão que já havia tomado de ajudar os navegadores portugueses:
      "Não tornes por detrás, pois é fraqueza
       Desistir-se de cousa começada"
As razões que movem os diversos deuses na sua tomada de posição são devidamente apontadas por Camões. Júpiter, limita-se a cumprir, ou antes, a fazer cumprir as decisões dos Fados, pois sabe, à partida, que é inútil lutar contra eles; aceita-as, de resto, pois reconhece o valor dos lusitanos.
Quanto a Vénus, ela imagina que, ajudando os portugueses, poderá vir a lucrar: eles são descendentes dos romanos e, portanto, de Eneias, seu filho, de quem herdaram uma língua latina; são, por outro lado, conhecidos como devotos do amor, de que ela é deusa; prezam a beleza e poderão vir a promover o culto de Vénus no Oriente, se por ela forem ajudados; Marte, para além da "ligação" a Vénus, preza o valor militar dos portugueses; Baco é, de certo modo, o “mau da fita” pois a sua psicologia é complexa: não aceita que os portugueses venham a ser bem-sucedidos no Oriente, vindo, um dia, a superar a sua própria fama nessas paragens.
Que os portugueses, humanos, o ultrapassem a ele, um Deus, é algo que não poderá aceitar nunca; tudo fará, por conseguinte, para os liquidar, ainda que numa atitude de revolta contra Júpiter e os Fados. Porque é, no fim de contas, lúcido, ele intui desde logo aquilo que mais tarde virá a dizer: se os portugueses chegarem à Índia tornar-se-ão deuses, reduzindo os deuses à sua dimensão de simples mortais.
Ele, Baco, não poderá consentir em tal inversão de valores, na desordem, no caos, na situação absurda que representaria uma total subversão da ordem do Universo. A presença da mitologia acompanhará a partir de agora toda a narração da viagem.
Os deuses serão intervenientes sempre ativos, quer assumindo funções de adjuvantes dos portugueses, quer de oponentes ao seu êxito.
Estarão no centro da trama que constituirá a verdadeira intriga do poema, e da sua luta dependerão avanços ou pausas na viagem.

Sintetizando, a função da mitologia neste poema é a seguinte:
1.      Constituir uma parte importante do maravilhoso inerente aos poemas épicos em geral, obedecendo pois, a uma regra do género;
2.      Assegurar a unidade interna da ação, pela criação de personagens ativas e “humanizadas” que se contrapõem a personagens humanas, monolíticas e, de certo modo, “desumanizadas” que são os navegadores;
3.      Embelezar, pela participação na intriga, uma narração de viagem que se arriscava a tornar-se demasiado árida e “prosaica”;
4.      Serem os deuses permanentemente autores de referências engrandecedoras dos portugueses, nomeadamente na formulação de profecias;
5.      Essencialmente, serem Pólo de confronto permanentemente com os homens, de modo a que seja evidenciada a supremacia destes últimos.
Os Deuses
  
Anfitrite - Mulher de Neptuno, filha de Nereu (Deus do oceano) e de Dóris. Foi primeiramente considerada deusa do Mediterrâneo, mas este domínio alargou-se depois aos outros mares.

Apolo - Filho de Júpiter e Latona, irmão de Diana. Conduzia o carro do sol. Tinha-se como o Deus da medicina, da poesia, da música, das artes; era o chefe das nove musas, com quem habitava os montes Parnaso, Hélicon, Piério, as margens do Hipocrene e do Permesso, onde ordinariamente pastava o cavalo alado Pégaso, do qual se servia para montar.
O galo, o gavião e a oliveira eram-lhe consagrados, por em tais seres se terem metamorfoseado os entes que mais amara. Apolo era representado com uma lira na mão ou com os instrumentos próprios das artes, colocados junto de si, num coche tirado por quatro cavalos.

Baco - Filho de Júpiter e de Sémele. Nasceu em Tebas e foi pai de Luso. Juno, esposa de Júpiter, sabedora das relações amorosas entre aquele Deus e Sémele, induziu a rival, aparecendo-lhe sob as feições da ama ou de uma amiga, a solicitar que o amante a visitasse na plenitude da sua glória. A ingénua desventurada viu, porém, a própria casa a arder e imediatamente pereceu nas chamas provocadas pelo fulgor do pai dos Deuses. Júpiter, no entanto, conseguiu salvar o filho (que receberia o nome de Baco), o qual Sémele ainda não dera à luz, recolhendo-o na barriga da perna, onde se completou a gestação.
Quando adulto, Baco conquistou a Índia e depois o Egipto, sendo, todavia, pacífico e benéfico o seu domínio: ensinou a agricultura aos homens e foi o primeiro que plantou a vinha, tendo sido adorado como o Deus do vinho.

Cúpido - Filho de Marte e de Vénus. Presidia aos prazeres e era representado na figura de um menino nu, com arco e aljava cheia de setas.

Diana - Filha de Júpiter e de Latona, irmã de Apolo. Deusa da caça e da castidade. O seu poder permitiu que metamorfease Actéon em veado por a ter visto banhar-se.

Dóris - Filha do Oceano e de Tethys, casou com Nereu de quem teve as Nereidas.

Hércules - Filho de Júpiter e de Alcmena. O pai dos Deuses, para enganar Alcmena, tomou a forma do marido, Anfitrião, na ausência deste. Juno, justamente indignada, conseguiu que Euristeu, rei de Micenas, obrigasse Hércules a doze trabalhos perigosíssimos, com o desejo de vê-lo morrer em um deles. Hércules porém, venceu.

Júpiter - O pai dos Deuses. Filho de Saturno e de Reia. Como Saturno devorava os filhos à medida que Reia ia dando à luz, quando foi a vez de Júpiter, Reia substituiu-o por uma pedra embrulhada, a qual Saturno imediatamente devorou. Júpiter foi levado para Creta, onde a cabra Amalteia lhe deu de mamar. Adulto, expulsou do céu o pai e casou com Juno. Reservou para si esta soberania, e deu o império das águas a Neptuno, o dos infernos a Plutão.

Marte - Filho de Júpiter e de Juno, Deus da guerra. Juno concebeu Marte, quando, irritada contra Júpiter por este ter dado à luz Palas, fazendo-o sair do próprio cérebro se sentou sobre uma flor fecundante, que lhe fora revelada pela Deusa Flora.
Presidia a todos os combates, mas nem por isso era pequena a ternura que votava a Vénus, por apaixonadamente amada.
Era representado na figura de um guerreiro, completamente armado, com um galo junto de si.

Mercúrio - Filho de Júpiter e de Maia. Deus da eloquência, do comércio e dos ladrões. Era o mensageiro dos deuses, particularmente de Júpiter, que lhe pegara na cabeça e nos calcanhares asas para as suas ordens serem executadas com uma maior rapidez.

Neptuno - Filho de Saturno e de Reia, irmão de Júpiter e de Plutão. Deus do Mar, casou com Anfitrite.
Era representado com um tridente na mão sobre um coche puxado por cavalos-marinhos.

Tethys - Tethys é uma das divindades primordiais das teogonias helénicas. Personifica a fecundidade “feminina” do mar. Nascida dos maiores de Ouganos e Gaia, é a mais jovem das Titânides.
Casou com Oceano, do qual teve grande número de filhos, mais de três mil, que são todos os rios do mundo.

Thetis - Thetis é uma das Nereidas, filha de Nereu, o velho do mar, e de Dóris. É por consequência uma divindade marinha e imortal e é a mais célebre de todas as Nereidas.

Vénus - Filha do Céu e da Terra. É a Deusa do Amor e da beleza. Após o nascimento foi levada pelas Honras ao Céu, onde os deuses ficaram extasiados de tanta formosura. Vulcano recebeu-a por esposa, como prémio de haver fabricado os raios de que Júpiter necessitou, quando os Gigantes quiseram expulsá-lo do Céu.
A deusa, porém, incapaz de sofrer a feldade do marido, procurou a companhia dos outros deuses, entre os quais Marte, de quem teve Cúpido. Amou também Adónis e Anquises do qual nasceu Eneias.

Vulcano - Filho de Júpiter e de Juno, Deus do fogo. Sua considerável feldade aumentou com um pontapé recebido do próprio pai, de que resultou ficar coxo.



N’”Os Lusíadas” estão presentes dois episódios mitológicos:

Concílio dos Deuses no Olimpo
É o concílio dos Deuses no Olimpo um modo de interligar os deuses com a viagem. Será no Olimpo que se decidirá “sobre as cousas futuras do Oriente” e foi este concílio convocado por Júpiter - pai dos Deuses.
A disposição hierárquica que é feita nesta reunião apresenta-se de maneira a que os considerados deuses menores (deuses dos “sete céus”) exponham também as suas opiniões sobre o seguimento ou não da armada portuguesa em direção ao Oriente.
Júpiter profere o seu discurso, anunciando a sua boa vontade do prosseguimento da viagem dos lusitanos, e que estes sejam recebidos como bons amigos na costa africana.
Júpiter diz que o facto de os portugueses enfrentarem mares desconhecidos, e de estar decidido pelos Fados que o povo lusitano fará esquecer através dos seus feitos os Assírios, os Persas, os Gregos e os Romanos, é motivo para que a navegação continue.
Após este discurso, são consideradas outras posições em que se destaca a oposição de Baco, pois este receia vir a perder toda a fama que havia adquirido no Oriente caso os portugueses atinjam o objetivo.
Uma outra posição de destaque é a de Vénus que defende os portugueses não só por se tratar de uma gente muito semelhante à do seu amado povo latino e com uma língua derivada do Latim, como também por terem demonstrado grande valentia no norte de África. É também Marte - Deus da guerra - um Deus defensor desta gente lusitana, porque o amor antigo que o ligava a Vénus o leva a tomar essa posição e porque reconhece a bravura deste povo.
No seu discurso, Marte pretende que Júpiter não volte atrás com a sua palavra e pede a Mercúrio - o Deus mensageiro - que colha informações sobre a Índia, pois começa a desconfiar da posição tomada por Baco.
Este concílio termina com a decisão favorável aos portugueses e cada um dos deuses regressa ao seu domínio celeste.


Concílio dos Deuses Marinhos


Novamente há uma ligação da mitologia com a viagem, numa perspetiva semelhante à do primeiro concílio, visto que, uma vez mais, Baco quer que o povo lusitano não atinja o seu objetivo.
Desceu o Rei das paixões, dos vícios e do vinho ao fundo do mar em direção ao palácio de Neptuno para o convencer a convocar um Concílio dos Deuses Marinhos. Convencido, Neptuno ordena a Tritão que convoque este concílio e Baco no seu discurso consegue convencer a assembleia do dito concílio da necessidade de afundar a armada portuguesa antes de chegar ao Oriente.
Estavam os portugueses na última etapa da viagem, de Melinde a Calecut, guiados por um piloto conhecedor daqueles mares (posto à disposição pelo Rei de Melinde), prosseguindo viagem “Com vento sossegado” e entretendo-se com histórias contadas pelos marinheiros para passar o tempo, quando as naus são intercetadas por uma tempestade.
Era esta tempestade proveniente dos ventos que Eolo soltara por ordem dos deuses marinhos.


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